8 de março de 2014

Um dia triunfal


Conta Pessoa em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro que no dia 8 de Março de 1914 - faz, portanto, hoje, 100 anos - lhe aconteceu o seguinte: "acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem."

Passando ao lado da polémica sobre a veracidade deste suposto "dia triunfal" que, segundo alguns investigadores, se terá tratado de uma mistificação ou de uma "fábula poética" - tanto mais que, como o próprio Pessoa escreveu, "o poeta é um fingidor" -, o que é verosímil, como demonstram algumas provas textuais, é que a génese dos heterónimos Caeiro, Campos e Reis se situará entre o início de Março e meados de Junho de 1914, período em que Pessoa escreve impetuosamente poemas em nome de cada um deles. Ou seja, o centro nevrálgico da sua obra, situa-se neste breve período de criação poética torrencial que Pessoa celebrou como sendo o seu "dia triunfal" e cujo centenário, também eu hoje celebro.

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