11 de março de 2014

A esperança é abundante, mas não é para nós


Há sete anos anos passou na RTP1 a série documental Portugal - Um retrato social, da autoria de António Barreto, com realização de Júlia Pontes e pesquisa documental de Maria João Silva, que, na ocasião, me suscitou uma breve reflexão sobre aquele retrato da sociedade portuguesa que punha em confronto o que o país era à data da realização da série com o que o país tinha sido nas últimas décadas. Quem éramos nós? Um povo com um forte sentimento de identidade e uma aguda consciência de um esplendor desaparecido? Mas também gente que vivia com convicção de sofrer um atraso crónico e crescente relativamente ao resto da Europa.

Ainda assim, há sete anos, no final daquela série televisiva, ficámos com o sentimento de que o país mudara e, em muitos aspectos, para bem melhor. Os que, como eu, viveram essa mudança, sabiam-no bem, embora, às vezes, parecessem esquecer-se. Sobretudo os mais novos ignoravam o alcance dessas mudanças. A emigração, a guerra colonial, uma revolução política e social, a democracia, a descolonização, a adesão à União Europeia foram alguns dos acontecimentos que marcaram as últimas quatro décadas e que provocaram ou aceleraram mudanças sociais profundas numa sociedade que revelava uma notável plasticidade. Diminuição da mortalidade infantil, integração das mulheres na população activa, expansão do sistema escolar, aumento dos rendimentos das famílias, declínio das actividades agrícolas, abrandamento das actividades industriais, terciarização, desenvolvimento do estado social, eis algumas das mudanças que o documentário de António Barreto evidenciou na altura. E, contudo, não fora fácil libertar o país de tudo aquilo que o estigmatizara durante décadas: a ignorância e a reverência, a delação e o medo, o autoritarismo e a repressão. Mas que o país mudara, que se aproximara dos padrões de vida e de comportamento europeus, isso era indesmentível.

Contudo, já à data da apresentação da série documental, a incerteza e a dúvida começavam a instalar-se nos portugueses. A um período de crescimento e desenvolvimento, seguia-se um tempo de recessão ou de estagnação com efeitos sociais e psicológicos que não mais pararam de se adensar. Quem, entretanto, conhecera melhores tempos, quem vivera a onda de progresso trazida pela democracia, via-se, doravante, ameaçado pelo abrandamento, pelo esgotamento. Portugal acentuava a sua tendência histórica para resvalar para a depressão bipolar. Tão depressa nos víamos como os "maiores", como rapidamente baixávamos os braços, transfigurando-nos em incapazes, indiferentes. Por isso, contraditoriamente, no final da cada programa, ficávamos, já então, com um certo amargo de boca, pois continuávamos a ser aquele país com "medo de existir" retratado por José Gil, incapaz de soltar-se e ir no encalço dos nossos parceiros europeus. Não porque essa incapacidade fosse uma fatalidade à qual não poderíamos escapar, mas, sobretudo, porque o nosso atraso resultava de muitos anos de governações erradas e de uma forma de estar cada vez mais arreigada nos portugueses, que preferem atirar o lixo para debaixo do tapete, viver à margem da crítica, pactuar com a mediocridade e cultivar a inveja.

"Empobreceram-nos!" exclamava Jorge de Sena, o poeta do desespero lúcido, num tempo anterior em que os portugueses trabalhavam o dia inteiro nos campos e nas fábricas, mal ganhando para o precário sustento das famílias, envelheciam rapidamente e morriam sem diagnóstico nem assistência, sem saberem de que mal padeciam,. E acima de tudo, sem esperança. Nesse tempo da "cobra e do abutre", para além da tirania dos que ditavam o que se podia ou não fazer, vestir, dizer ou mesmo pensar, havia ainda a tirania da permanente poupança, da privação perpétua do prazer, da existência num mundo estagnado sob um céu de chumbo.

 "Acusam-me de mágoa e desalento (...) / homens dispersos", escreveu Carlos de Oliveira interpelando a pátria do seu tempo, então tão confusa, perdida e aparentemente tão alheada como agora. E "que Portugal se espera em Portugal?" perguntava, também, Jorge de Sena algumas décadas atrás. Onde existem, agora, os que deixaram de existir, desaparecidos no vórtice de um país com medo de existir, apetece-me a mim perguntar.

Outras décadas mais tarde e sete anos depois do retrato traçado por António Barreto, o empobrecimento dos portugueses está de volta, como se constata no retrato de portugal traçado pelo INE: ficámos a saber que o PIB do país recuou para valores semelhantes ao ano 2000 e que o emprego caiu para os níveis de 1996 e que em dois anos e meio os portugueses perderam 328 mil empregos. E tudo isto para iludir uma dívida pública bruta descontrolada que, no mesmo período, subiu de 94% para cerca de 130%, bem acima das previsões da troika.

Confrontando-se com estes números catastróficos, o primeiro-ministro vai afirmando que o país não voltará tão cedo a viver na pequena prosperidade que os portugueses julgavam que já lhes pertencia,  o Presidente da República vai avisando no prefácio ao seu livro Roteiros que os sacrifícios terão, ainda, de perdurar por mais duas décadas e o patrão da Sonae justificando com argumentos falaciosos a impossibilidade de aumentar salários. Uns e outros prevendo sem justa alternativa, e sem remorsos, o empobrecimento progressivo do país. E com argumentos que põem em questão a razão de ser e a credibilidade dos tempos que aí vêm. Todos, no fim de contas, indiferentes à nossa história nacional do alheamento que perdurou durante a maior parte do século XX e que, a julgar pelos sinais que não cessam de se avolumar, parece querer repetir-se, reinstaurando a tirania da privação que nos vai moendo até levar à desistência.

A contrapelo desta história nacional do alheamento, e a contragosto da Alemanha, há quem olhe de frente para o precipício fazendo lembrar aqueles "exploradores do abismo" do livro homónimo de Enrique Vila-Matas: "pessoas comuns que, ao ver-se à beira do precipício, adoptam o estatuto de expedicionário e sondam no plausível horizonte, indagando o que pode haver fora daqui, ou no mais além dos nossos limites". E o que nos vêm dizer esses exploradores através de um Manifesto, hoje tornado público, subscrito 70 personalidades da esquerda à direita, é que mais além dos limites impostos pela troika deveria ser considerada a reestruturação da nossa dívida como via para não se esgotarem definitivamente os garantes político-materiais da esperança a que os portugueses têm direito, sobretudo os mais jovens atirados para o desemprego ou para a emigração. Porque, como diria Kafka se lhe fosse pedido que traçasse o retrato de Portugal, "a esperança é abundante, mas não é para nós".

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