12 de janeiro de 2014

Despudor televisivo



Comentando a morte de Eusébio, na sua coluna semanal do Público, "Estação Meteorológica", escreve António Guerreiro que "em momentos excepcionalmente favoráveis ao apelo à dramatização e ao olhar que se satisfaz (...) na sua própria emoção, as televisões mostram a sua face mais abjecta: é quando tudo fazem para introduzir as ditaduras do coração". Na semana que passou, aproveitando-se do sentimento de luto daqueles que participaram na homenagem prestada, no Estádio da Luz, ao mítico jogador, as televisões desdobraram-se em relatos, reportagens e comentários de jornalistas levando até ao limite do intolerável o despudor com que inquiriam sobre as emoções de cada um, produzindo uma espécie de delírio colectivo em torno do acontecimento processado mediaticamente de modo a exacerbar os seus efeitos dramáticos. A mesma "violência do despudor" televisivo tinha já atingido um dos seus picos mais abjectos durante os dias que sucederam ao desaparecimento no mar dos seis jovens que foram engolidos por uma onda assassina na praia do Meco, com os mesmos jornalistas, desavergonhadamente sitiados no cenário da tragédia, exercendo a "violência do despudor".

Envergonhamo-nos nós, também, quando, sem respeito pelo luto e pela dor do Outro, nos chega repetidamente através do écran a pergunta despudorada: "o que é que sente?" E a vergonha que sentimos é uma tripla vergonha: vergonha pelo jornalista que faz a pergunta, vergoha, também, por quem se apresta a responder e vergonha, ainda, por nós próprios, por sermos coagidos a nos colocarmos no lugar seguro em que, em nossas casas, nos encontramos como contempladores sensíveis mas indiferentes ao espectáculo dramático que se vai desenrolando diante do nosso olhar sem que tenhamos coragem de nos pormos noutro lugar.

Vistas, assim, as coisas, este jornalismo rasurado responde ao acontecimento não para para lhe dar tonalidade expressiva e retraçá-lo racionalmente, mas para nos introduzir nele como espectadores obscenos cujo ponto de vista é sempre incitado, e excitado, por formas e processos de mediatização que visam a exposição de sentimentos, melhor dizer, o desnudamento da intimidade do Outro.

"Violência do despudor" que só pode ser exercida com a cumplicidade ou, pelo menos, com a aceitação tácita daqueles que a exercem sobre os outros: os jornalistas; daqueles que a sofrem: as pessoas apanhadas na rua; e daqueles que, em suas casas, não mudam de posição diante do écran: os espectadores.

Porque não, então, sempre que a maquinação mediática nos pretenda intimidar, e desnudar, quer sejamos jornalistas com empregos precários ou transeuntes ocasionais em lugares de reportagem ou espectadores sensíveis, não opormos à violência do despudor a objecção da consciência? Porque se os jornalistas, também eles vítimas da violência do medo de perder o emprego, não podem dizer tudo o que pensam, poderão, pelo menos, não perguntar aquilo que desrespeita o luto e a dor alheia. Do mesmo modo que, também, as pessoas apanhadas na rua poderão sempre calar as suas respostas e os espectadores, em casa, mudar de lugar.

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